Monday, August 23, 2010

Dez Comentários Sobre Um Domingo Na Serra do Lajedo - Texto 1



Passei um domingo na Serra do Lajedo. Aninha me convidou pra uma festa de casamento de um casal parente seu. Cinqüenta anos de casados eles iam fazer, portanto, o acontecimento merecia um festão. Eu nunca havia ido á uma festa no interior, só conhecia de ouvir falar.

Subimos a serra no domingo bem cedinho da manhã, eu, Costa Jr., Aninha e suas irmãs. Ana me disse que o nome verdadeiro é lajeiro, porém, acho que a palavra lajedo se encaixa mais. A palavra deriva de laje, pedra pavimentada, rocha de superfície plana, abundante naquela região.

Fomos por uma estrada de piçarra, de chão seco, árido. A certa altura paramos o carro, descemos e ficamos contemplando a paisagem lá em baixo. Maranguape e Itapebussú despertavam num espreguiçamento que somente quem é nordestino pode compreender. O nordestino não é desses que pula da rede num salto. Primeiro ele se espreguiça lennntamennnte, bem devagarzinho, que nem gato quando acorda, se esticando todo. Depois desse ritual “espriguiçatório”, o dia começa. O verde da serra estava rareado. Aqui e acolá se via algo esverdeado, a cor predominante era o amarelo das rochas gigantescas e davam ao lugar um ar fantasmagórico, mas nem por isso destituído de beleza. Os raios solares batiam nas pedras e pequenas pepitas brilhavam, ofuscando e nos fazendo esquecer-se dos arbustos secos, minguados e tristes que enchiam a paisagem. Lembrei de Moisés subindo o Sinai com seu rebanho e se deparando com o arbusto inflamável, onde a voz de Deus o chamou pelo nome.

Alguém me falou de assaltos na estrada. Os ladrões param o ônibus em plena serra e tomam os poucos pertences dos viajantes. Que triste! O último lugar que se pensa em assalto é numa estrada de terra em cima da serra. Aquele ambiente não tem absolutamente nada a ver com esse tipo de coisa e me impressionou o fato dessas coisas de cidade grande ter chegado até lá. O mal subiu a serra de pedra pavimentada. Lembrei dos salteadores dos quais Jesus fala na parábola do Bom Samaritano. Imaginei o pobre homem da parábola caído naquela estrada solitária e poeirenta e fiquei me perguntando se por ali existia um bom samaritano. Mais tarde, numa situação inesperada e hilariante, descobri que a Serra do Lajedo é habitada por bons samaritanos, sim.


Lembranças e Saudades Inesperadas - Texto 2


Quando chegamos, fomos direto para a casa do Marcos, irmão da Ana, onde tomamos café e depois seguimos para a casa da sua mãe que fica bem em cima da serra. Nem bem cheguei e a singeleza da casa, o cheiro do bananal, o céu profundamente azul e a simpatia da dona da casa me conquistaram. Adentrei até a cozinha e me deparei com um fogão à lenha em pleno funcionamento. O fogão me reportou à infância, onde no quintal de casa, em plena capital, meu pai mandou construir um fogão à lenha. Nele se cozinhava feijão, um remédio chamado Cibazol e doces. A memória também reviu o “quarto do carvão”, bem ao lado do fogão e que eu achava super misterioso. É impressionante como a memória pode ressuscitar odores. A mente humana é recipiente de cheiros, nenhum se perde, todos ficam guardados, esperando o olho ver alguma coisa que traga lembrança e que abra a porta, aí eles podem sair e festejar.
No fogão da Raimundinha (mãe da Ana), uma panela cheia de favas cozinhava pacientemente. O cheiro era bom, mas por minutos o cheiro do Cibazol, do quarto do carvão e dos doces rivalizou com as favas. Por uns minutos apenas, esses odores passearam pelas minhas narinas e trouxeram uma saudade que eu nem sabia que tinha. Fiquei quieta, sem querer sair da cozinha, me sentei num banquinho de madeira, de frente pra janela que dá para o terreiro e esperei os odores se acalmarem. Eles foram embora, mas deixaram as primeiras lembranças puxando outras lembranças que, por sua vez, traziam saudades diferentes. Todo esse furdunço emocional foi só porque o olho viu. Saudade boa, gostosa. Bem que Jesus falou que “se o teu olho for bom, todo o teu corpo terá luz”. Meu olho pousou num fogão à lenha e o meu coração foi iluminado de saudade boa.
Quando os odores da infância foram embora, satisfeitos, o cheiro da fava reinou. Cheiro bom. Fiquei com água na boca, doida pra provar da iguaria típica da Serra do Lajedo, porém, os felizardos eram os porcos que chafurdavam no quintal. Na casa da Raimundinha não há acepção do que quer que seja. Onde se cozinha comida de gente se faz comida de bicho também. O fogão à lenha é para todos. A fava de cheiro bom era para os porcos. Me deu vontade de comer delas, mas fiquei com vergonha de confessar. Tive vontade de parodiar Jesus e dizer pra Raimundinha “não lanceis vossas favas aos porcos”! Disseram-me que as favas para os porcos são amargas, só eles conseguem comer. Aí me conformei. Sendo assim...
De repente, surgiu uma panela de batata doce, colocada no fogão pra cozinhar, depois outra com carne de porco pra assar; uma garrafa de café quentinho e tomates minúsculos apanhado no terreiro. Em poucos minutos estávamos bebendo café com batata doce e carne de porco assada com farofa e cebola. Isso era apenas pra “forrar o bucho”, pois a festa ia começar ao meio-dia. Ficamos ali, jogando conversa fora e trazendo alegria pra dentro do peito.

Casa Sem Alma - Texto 3



Aninha percebeu meu carinho pelo fogão da sua mãe e me convidou a ir até a casa onde seu pai nasceu e ver um típico fogão à lenha. É que o fogão da Raimundinha foi revestido de cerâmica. Você já viu um matuto de verdade, metido num terno e gravata, no meio do roçado? É o fogão à lenha da Raimundinha. Todo arrumado, todo querendo ser moderno, porém, adornado por aquelas panelas “carimbadas” pelo tempo, amassadas, com resquícios de carvão, que fazem a comida parecer mais gostosa.

A Ana quis me mostrar um original, com a idade de 84 anos, um matuto vestido de matuto. Descemos uma ladeira íngreme, cheia de pedras, por entre o bananal e tocamos pra lá. Que casa maravilhosa surgiu diante dos meus olhos deslumbrados. Absolutamente sertaneja; preservada em quase tudo. Digo em quase tudo, porque quando fomos para a cozinha ver o fogão à lenha já ancião, ele não estava mais lá, não existia mais. Alguém mandou demolir o velhinho. Os olhos da tia da Ana se encheram de lágrimas quando contou como e porque ele foi demolido. O olho dela não via mais o velho fogão e a saudade ruim, aquela que dói, remoia seu peito. Falou do fogão como se fala de um bom amigo, de um bom companheiro que morreu e deixou muitas saudades. Às vezes, o que os olhos não vêem o coração sente dobrado. A casa é linda, mas sem o fogão é como se ela não tivesse alma. Roubaram a alma da pobre casa. Ele se foi e deixou como prova de sua existência o preto da fumaça nas telhas, o cheiro de lenha queimando e embriagando o ar. Pobre casa desfalcada! Como adentrar no céu das iguarias, da comida cheirosa e gostosa sem um fogão à lenha? Mas Deus é Pai, Bom e Misericordioso, pois adornou as mãos da Dona Fransquinha (tia da Ana e moradora da casa) e as fez independente de fogões. Não é que ela nos ofereceu uma galinha caipira com pirão de farinha feito do caldo, daqueles de fazer nego chorar de alegria? E feito num fogão a gás? Que delícia, meu Deus! Depois peguei um caneco de alumínio bem areado, mergulhei no fundo do pote e bebi a água mais gostosa da minha existência. Podia dizer do Salmo 23 “preparas uma galinha caipira para mim na presença dos meus amigos, unges o meu coração de alegria, o meu copo transborda de prazer”.

A ausência do fogão foi compensada pelo restante da casa. Portas com trancas de madeira; piso de antigas lajotas de barro, daquelas que se tem que “aguar” quando o dia tá quente. A pia de lavar louça ainda é a janela da cozinha que dá para o quintal, com a bacia de alumínio sustentada por uma mesa de ripas de madeira. As esponjas de lavar panelas ainda são as buchas vegetais e as cabaças ainda servem de recipientes. “Ainda” é uma palavra que cabe muito bem na velha casa da Serra do Lajedo. Lá, as coisa boas e antigas “ainda” funcionam, menos o velho e saudoso fogão à lenha.

Quando a gente conversa com a dona Fransquinha, a gente entende que modernidade não a impressiona, não a escraviza. Ela é livre. A geladeira está lá e ajuda a preservar os alimentos, mas quando a goela pede água é o pote que reina. E por falar em reinado, bem no alto do monte coberto de bananeiras que fica ao lado da casa, impera soberana e absoluta uma gigantesca rocha, que mais parece um altar judaico. A gente olha para o alto e ela está lá, imponente, soberba, nos lembrando da nossa pequenez. Parece que flutua e temos a impressão que ela poderá rolar na primeira chuvarada que der, mas está lá há anos, escultural e bela. Fiquei com vontade de subir, deitar óleo nela e adorar ao Criador. Jesus diz que devemos construir nossa casa sobre a rocha, pois só assim as tempestades não a derrubam. O avô da Ana levou esse conselho ao pé da letra. A senhora casa de 84 anos foi construída sobre pedras imensas, sobre os lajedos ofertados pela Natureza. A casa é simples. Suas paredes são brancas, seu chão e teto, de barro, matéria-prima que Deus usou para fabricar o Homem, mas seus alicerces são rochas. Parece com aquela pessoa que ama O Senhor de coração. Tem aparência frágil e simples, mas sua vida é alicerçada nos lajedos divinos, na Rocha Viva que está no céu.


O Cão de Guarda - Texto 4


Já perto do meio-dia voltamos, sem antes eu levar uma bela mordida do cão de guarda que não arreda as patas da casa. A culpa foi toda minha. Quando cheguei na casa, ele estava deitado na varanda, dentro de casa. Eu o afaguei e ele recebeu o afago abanando o rabo. Quando o cão de guarda está dentro de casa e o visitante também, ele sabe que aquela pessoa foi aprovada pelo dono casa e curte o carinho, mas estando no terreiro, ele cumpre seu papel direitinho e não permite intimidades. Está de serviço e hora de trabalho não é hora de brincadeiras. Eu esqueci essa lei canina e fui afagá-lo fora da casa. Me dei mal. Ele agarrou meu braço e senti quando seus dentes entraram na carne do meu braço. Que dor! Que susto! Aflição! Dona Fransquinha lavou o ferimento com sabão virgem e me tranqüilizou que ele é vacinado (mesmo assim, tomei duas injeções anti-rábicas). Voltei com muita dor no braço, tendo de encarar a ladeira que, se não foi lá essas facilidades toda descer, imagine subir. Subi no maior esforço, com o braço latejando e ainda tremendo do susto. No meu braço está a marca da fidelidade e da competência canina. “Longe de quem come, e mais longe ainda de quem guarda!”, este é o lema dos cães lajedienses.

O Ovo - Texto 5


Cheguei esbaforida na casa da Ana. Subir a ladeira não foi fácil. Quando cheguei, me joguei numa cadeira da varanda, esperando o cansaço diminuir. Olhei para o lado e vi em cima de uma esteira, um ovo. Fui lá e peguei. Estava quentinho e eu achei que era um ovo cozido, jogado ali por uma das crianças da casa. Mostrei pro Costa e ele me disse que a galinha havia posto naquele momento, por isso estava quentinho. Bem, pra desculpar minha ignorância, podia não ser um ovo cozido e sim, um ovo “cuzido”...rsrs...

A Festa - Texto 6


Tomamos banho com água congelada (rsrs) e fomos para a festa. Quem já tomou banho com água de caixa d’água em cima da serra, me entende. Eita água fria. Pois bem, tocamos para a festa de casamento. A casa era pequena, mas a quantidade de comida era grande, enorme, macro. Imagine um banquete romano regado a cachaça em vez de vinho. Três carneiros foram sacrificados para o ritual de cinqüenta anos de casamento; fora as galinhas caipiras, as lingüiças e a carne de gado. Sem contar ainda as saladas, arroz e feijão em abundância e frutas, muitas frutas. Se eu fosse chegada a uma cachacinha e forró, tava feita. De longe ouvi o forró troando, mas o que eu queria mesmo era comer numa festa interiorana, ter essa experiência que, confesso, foi inesquecível e agradabilíssima, apesar dos acontecidos. Uma coisa que me impressionou muito foi o fato de a casa estar cheia de gente. Claro que uma festa enche uma casa de gente, principalmente quando se trata de casamento, mas TODO MUNDO ser da mesma família? Peraí! Acho que a única “não-abreu” era eu. Até do meu amigo Costa Jr. desconfiei ser um Abreu, pois a cumplicidade com que ele adentrou a casa foi interessante; parecia que já conhecia o povo, a casa. E começou um festival de “aquela é minha tia, aquele é meu primo, aquela outra, minha prima segunda...”, etc., etc. Era mais fácil saber quem NÃO era da família: eu mesma. Para quem não sabe, vai a dica: em cima da serra do Lajedo tem a “Abreulândia”, terra dos Abreus.

A Cumplicidade Está no Pote - Texto 7


É interessante perceber que nessas festas todo mundo entra, come e bebe. Ninguém se importa, ninguém se preocupa, ninguém desconfia de ninguém. Ninguém quer saber quem é aquele que acabou de chegar, entrou e comeu fartamente, só sabe que é Abreu, isso é o suficiente. A casa é de todo mundo. Todos dividem tudo, inclusive a caneca de tirar água do pote. Contei que na casa da dona Fransquinha tinha um pote com caneca, etc., porém, a caneca é somente para tirar água do pote, não se pode beber nela. Na festa, o sistema era diferente. A caneca tanto servia para tirar água do pote como para beber. E era somente uma caneca. Ali, tive uma aula prática e aprendi o que é cumplicidade. Todo mundo que tava com sede ia ao pote, metia a caneca e bebia. E as crianças? As crianças também e ainda pondo em prática os ensinamentos de que água é coisa valiosa no sertão (principalmente nesses tempos sem chuva), portanto, tem que economizar. Elas bebiam e o que sobejava, devolviam ao pote. Só depois de um tempão foi que observei o fato. Tarde demais! Quando cheguei à festa estava com muita sede e ainda embriagada pelo sabor da água do pote da Dona Fransquinha, pedi um copo d’água toda contente e bebi cheia de alegria. Fazer o quê, né?

A Boa Samaritana da Serra do Lajedo - Texto 8


Depois de comer tudo que tinha direito e o que não tinha também, o dono da casa passou pela nossa mesa (estava eu, o Costa e a Ana) e colocou uma BACIA cheia de carne de carneiro assada bem na nossa frente. Eu disse uma BACIA. Só pra nós três. Fui inventar de dar uma beliscadinha de nada, porém, a carne era de uma maciez capaz de fazer qualquer desdentado triturá-la; estava no ponto (nem salgada, nem insossa) e o cheiro, então?...hum... Não resisti e mandei ver.

Foi em tremenda aflição que conheci de perto a hospitalidade dos lajedienses. Hospitalidade mesmo, no sentido da palavra. É fácil ser hospitaleiro quando conhecemos a pessoa. Por isso, disse que a Serra do Lajedo é habitada por bons samaritanos. Depois de comer bastante, sem costume dessas festas, acostumada a pizzarias, lanchonetes, aniversários regados ao creme de galinha, essas coisas de cidade grande e ainda somando ao susto de ter sido mordida pelo cachorro, senti uma das maiores dores de barriga da minha vida. Não consigo traduzir como era a dor. Parecia que tinham colocado meu intestino numa máquina de lavar, na máxima velocidade. Comecei a suar frio e pedi socorro a Aninha, que prontamente quis me levar ao banheiro, mas só tinha um banheiro na festa e eu achei melhor pegar o carro e ir até a casa do Marcos, seu irmão, o lugar mais próximo. O Costa foi dirigindo e as ruas do vilarejo são cheias de lombadas naturais, feitas de barro vermelho, o que fazia com que a agonia do intestino aumentasse. Chegamos na casa do Marcos e estava fechada. O desespero tomou conta do meu ser, principalmente do meu intestino, coitado, que se apertava aflito, pedindo para ser aliviado. A dor de barriga se misturou com a angústia de não ter pra onde ir. Comecei a orar, a pedir misericórdia a Deus e como sempre, Ele foi mais uma vez Bom e Misericordioso para comigo. Aninha se lembrou de uma amiga, Dona Fátima, e fomos lá. Agora imagine, fazia tempos Ana não via essa senhora e chegou de repente na pequena fazenda da Dona Fátima, acompanhada da minha pobre figura pálida, aflita, desesperadamente necessitada de um banheiro. Ana nem falou direito com a anfitriã, foi logo pedindo para eu usar o banheiro. Dona Fátima poderia ter ficado indignada, mas quando olhou pra mim sentiu pena, tenho certeza, pois, sem delongas me deixou entrar.

Caminhei para o banheiro como um budista caminha para o Nirvana: disposta a me esvaziar de tudo. Quando abri a porta e vi o vaso sanitário, a alegria foi tão grande que (Deus me perdoe), comparei aquele pequeno espaço com o Paraíso. E quando sentei? E quando fiz o que tinha que fazer? Sentei e tudo se fez novo. Nunca havia orado naquelas circunstâncias, mas posso garantir que naquele momento minha oração foi uma das mais fervorosas e agradecidas que orei.

Depois que saí do banheiro (morrendo de vergonha), me apresentei. Pensei que a dona Fátima fosse me despachar. Qual o que! Dona Fátima me ofereceu remédio e armou uma rede na varanda pra eu deitar e descansar. Uma rede novinha, limpinha e cheirosa.

A casa da dona Fátima é um pequeno Paraíso na serra do Lajedo. Ela é viúva, mora com os filhos e cria gado. Sua casa é linda, toda avarandada, cheia de paz. Na sua cozinha tem um enoooorme fogão à lenha, onde ela cozinha favas, feijão e carne. No forno do fogão a gás, dona Fátima faz bolos deliciosos. Sei disso porque acabei não resistindo quando, ao acordar do cochilo, ela me ofereceu uma fatia de um deles, com café. E a vida continua. Ah, dona Fátima, se todos fossem iguais a você...