Monday, April 18, 2011

Faz-se Monstro!

Vi o vídeo onde Wellington de Oliveira, o assassino das 12 crianças da escola em Realengo (RJ), fala sobre “os corruptos, falsos e impuros”. Havia muita raiva em seu olhar. Através dos seus olhos dá para perceber o ódio que Wellington nutria pela humanidade. Quando seu rosto se aproxima da câmera para desligá-la, seus olhos são assustadores. Na matéria da revista Veja, um dos rapazes que estudou com Wellington, confessa que ele e outros meninos (na época) “zoavam” dele “até não aguentarem mais” e chegaram a colocá-lo dentro de uma lata de lixo. Uma pessoa que leu a matéria ao meu lado disse que esse era exatamente o lugar dele, só que essa pessoa esqueceu que nessa época Wellington tinha apenas dez anos de idade. Wellington era um garoto tímido, reservado, não falava com ninguém. Lembro-me de uma amiga que tive numa das escolas que estudei, a Rosa. Ela simplesmente não falava. Era arredia, excessivamente tímida, vivia num silêncio estranho. No meio de tanto barulho (éramos 40 meninas e meninos dentro de uma sala de aula) o silêncio da Rosa incomodava e a turma a ridicularizava. Menos eu. Devagar, aproximei-me da Rosa e consegui fazer com que ela conversasse comigo. Rosa era filha de uma católica fundamentalista e recebeu ordens para não se misturar com “a ralé do mundo”. Pobre Rosa! Eu era a única menina que ela conversava. Era excessivamente calada, magra e pálida. Não gostava de comer, por isso tinha os ossos salientes e as meninas caiam em cima dela com mil apelidos humilhantes. Eu sentia uma necessidade inexplicável de proteger a Rosa. Discuti com muita colega por causa dela. Na época não sabia o porquê, mas hoje sei que foi por causa das humilhações que sofri num certo colégio de freiras onde estudei antes de conhecer a Rosa. Todos nesse colégio sabiam que meu pai era espírita e quando a turma descobriu, passou a me chamar em alto e bom som, para quem quisesse ouvir de “filha do feiticeiro”. As irmãs não faziam nada e eu me sentia profundamente humilhada. Por causa disso passei a ter um comportamento agressivo e sentir um ódio muito grande da menina que liderava a humilhação. Há uns quatro anos atrás, no auge de uma grande crise de depressão, estava no Shopping Iguatemi quando avistei aquele rosto tão negativamente conhecido. Era ela nos seus quarenta e tantos anos. As lembranças das humilhações vieram e eu não pude evitar a raiva dela e de mim mesma (por ter permitido aquilo). Fiquei olhando de longe, com uma vontade enorme de ir falar com ela e dizer-lhe de todo o sofrimento que ela e aquelas outas crianças me causaram. Mas não fiz. Entrei no banheiro do shopping e chorei. De acordo com depoimentos de familiares e conhecidos, Wellington foi um garoto muito “triturado” na escola, sem contar que sua mãe biológica sofria de esquizofrenia, e por ser incapacitada de cria-lo, teve que entregá-lo a outra pessoa. Será que Wellington herdou os problemas mentais da mãe? Acho que sim. Ninguém, em sua sã consciência, entra numa escola e mata doze crianças só para se divertir. Disseram que ele era terrorista devido a sua admiração ao atentado do 11 de Setembro. Não acho que ele era terrorista, acho que ele era “aterrorizado” com o mundo. Acho que herdou os distúrbios da mãe, misturado com o sentimento de ódio - consequência dos anos de bullying - e do qual não conseguiu se libertar, acabando por tirar a vida de doze adolescentes inocentes, que nada tinham a ver com sua triste história. Pobres meninos e meninas. Pobre Wellington. Pobre sociedade em que vivemos. O mais triste e apavorante de tudo isso é saber que existem muitos wellingtons por aí sendo invadidos pelo sentimento mais destruidor da história humana: o ódio. Existem monstros sendo alimentados, nutridos, não em laboratórios científicos nem pelas mãos de algum Victor Frankenstein, mas no coração de muitos wellingtons espalhados por esse planeta. O ódio não gosta de frios laboratórios nem de robôs. Ele gosta é do coração humano, o seu objeto de maior desejo; vive em busca de gente que sente, pensa e que tem sangue nas veias.

Friday, January 14, 2011

FOI-SE O TEMPO!


Foi-se o tempo em que chuva era sinônimo de alegria. Lembro que eu ficava no portão da minha casa, olhando pro céu cinza, pesado, esperando ansiosamente que ele decidisse abrir as compotas e derramar a chuva tão esperada. Quando os primeiros pingos d’água caíam, ouvia-se a voz de alguém em algum lugar, gritando: “Lá vem chuvaaaaaa!”. Tava tocada a trombeta. Era uma coisa medonha. Dava pra sentir o frenesi do bairro em movimento. Abria o portão quase em desespero e saía correndo pra biqueira que tinha na parede da frente da minha casa. Tinha que ser rápida porque um bando de meninos e meninas ensandecidos, enlouquecidos, afoitos, corria pra debaixo dela, disputando cada pedaço. Ela era bem alta e enorme. Como naquele tempo ainda não tínhamos chuveiro em casa, banhar-se com as mãos livres, sem a cuia, era novidade. Não adiantava argumentar que eu e somente eu tinha direito a ela, pois estava na parede da minha casa. As biqueiras eram os brinquedos mais desejados em dias de chuva e como no Ceará não tem inverno, e sim, chuva de verão, a gente sabia que o aguaceiro terminaria logo, por isso, a disputa pela biqueira se tornava tão acirrada. Tinha também o corre-corre das mulheres em direção ao quintal. Corriam com baldes, bacias, panelas, para aparar água da chuva. Essa água era armazenada, guardada com carinho, pois tinha a importante função de lavar cabelos. Diziam que era água pura, limpa, pois vinha de Nosso Senhor. Eu não entendia porque elas não faziam comida ou remédio, afinal, era água diretamente da fonte divina, devia ser milagrosa. Ainda tenho nas minhas lembranças olfativas o cheiro do Neutrox, o condicionador mais famoso da época. Enquanto as mulheres corriam pros quintais, os homens corriam pros balcões das bodegas, onde bebiam cachaça com tira-gosto de avoante, numa irmandade poucas vezes vista. Também não entendia porque tiravam o gosto da cachaça se gostavam tanto dela. Chuva era festa. Trazia alegria, diversão, feijão verde, milho, fruta, fartura. E quando terminava o ciclo das chuvas, vinham as festas juninas e as chuvas do caju. Meu pai, nascido no Cariri, ficava tão contente que contratava cantadores de viola para se apresentar na sala da minha casa, transformando-a num auditório. Quase todo o bairro vinha ouvir a dupla de repentistas que se confrontava com muita criatividade. Colocavam uma bacia de alumínio diante dos dois violeiros. Quem gostasse atirava moedas. Ainda ouço o barulho delas caindo na bacia. Foi-se o tempo. Hoje, chuva dá medo, gripe, dengue, leptospirose, casa desabando, gente desabrigada, revolta, morte. Hoje, chuva mata, quem podia imaginar uma coisa dessas? As biqueiras altas, aquelas que pareciam cascatas, não existem mais, estão rente ao chão, humilhadas. Não são mais brinquedos, nenhuma criança disputa seu espaço, a função delas é simplesmente jogar a água da chuva na calçada, não são mais canais de alegria, são meros objetos de necessidade. As mulheres dessa nova geração nem sabem que um dia suas mães e avós lavaram os cabelos com a santa água que descia do céu e que a noite chuvosa foi testemunha de cabelos cheirosos que seduziam, produzindo suspiros de amor e muito menino.

Rosane de Castro/Janeiro/2011

Tuesday, January 11, 2011

DESCALÇA E DIVERTIDA


Ler “Fortaleza Descalça”, de Otacílio de Azevedo, é qualquer coisa de muito bom. Crônicas leves e divertidas, cheias de informações sobre Fortaleza antiga, ainda do tempo que a cidade nem calçamento tinha, daí o título. A cidade nem chinelos possuía, mas era dona de um balaio de histórias engraçadas. Uma delas é sobre o Bembém, dono de uma garapeira situada na Praça José de Alencar. Garapeira era onde se vendia caldo-de-cana, naquele tempo chamado de garapa. O Bembém juntou grana durante anos e realizou seu sonho de conhecer Paris. Voltou impressionado por todo mundo lá falar francês, até as crianças, e a única pessoa que falava português como ele era um homem chamado Cicerone, que o acompanhava por tudo quanto era lugar e a única palavra em português que ouvia sair da boca do povo era “mercibocu”. Quando voltou, tratou de mandar fazer uns cartões com o nome do estabelecimento afrancesado. A Bembém Garapeira virou “Bien Bien Garapière”. E tem a crônica do “Cajueiro Botador”. A árvore ficava na Praça do Ferreira. Nela se pregava no tronco (e pendurava em seus galhos) tabuletas com anúncios, endereços de lojas, declarações de amor, protestos, etc. À sombra do Cajueiro Botador havia encontros de intelectuais, políticos, desocupados, ricos e pobres; todos se tornavam iguais quando se viam sob o velho cajueiro, retirado da praça por ordem do prefeito Godofredo Maciel, em 1920. Conta o cronista que todo ano, no primeiro de abril, dia da mentira, havia uma festa de arromba debaixo da famosa árvore, com direito a Banda da Polícia e tudo. Como era o dia da mentira, as tabuletas traziam as mais mentirosas e estapafúrdias notícias. Era um divertimento só. Outra crônica interessante é a descrição da primeira versão da Igreja Coração de Jesus. Um luxo! Foi construída pelo Barão de Aratanha, cunhado de Juvenal Galeno, a pedido de D. Luís, primeiro arcebispo de Fortaleza. Otacílio de Azevedo fala com muito carinho do sino da igreja e do Frei Marcelino de Milão, que, coincidentemente, mamãe conheceu. Conta a minha mãe que freqüentava os bastidores da igreja porque minha bisavó, Maria de Castro, era da Ordem Terceira. Não sei do que se trata essa “Ordem Terceira”. Nem minha mãe lembra. Só sabe que sua avó dizia com muito orgulho que era desse negócio aí. Frei Macelino era bem velhinho e mamãe, bem novinha, tinha cinco anos. A família estava dividida entre católicos e espíritas, coisa que preocupava muito minha bisavó. Em uma das visitas, o velho frei perguntou a minha mãe:
- Isoldinha, minha filha, você é espírita ou católica?
- Sou paulista! - respondeu mamãe inocentemente, pois sabia que nascera em São Paulo.
- Tá vendo, Mariazinha, ela não é nem católica nem espírita, é paulista – divertia-se o frei.
by Rosane de Castro/Janeiro/2011

CHOQUE DE PROMOTORES

Abri a porta da secretaria da faculdade e ela estava lá, sentada de frente pro computador, um ancião cansado, de passos lentos e memória quase parando. O próprio velho PC já não se suporta mais, vive clamando aposentadoria, desejando com ardor ser encostado e esquecido em um canto qualquer. E o modo como protesta é simplesmente não funcionando em momentos de extrema necessidade. No entanto ela o olhava com conformada paciência, esperando ele desistir da rebeldia e iniciar o trabalho. Nem o velho PC resiste aos encantos da dona Socorro. A paciência é uma das virtudes perceptíveis dessa mulher que tanto admiro e a quem, carinhosamente chamo de professora. Há anos está à frente da direção da Faculdade Contemporânea do Ceará e é respeitadíssima, não somente devido à inteligência, delicadeza e à disposição em ajudar, mas por ser um dos maiores testemunhos vivos de coragem que conheci. A professora Socorro lutou contra um câncer de mama por alguns anos e venceu. Nunca se deixou abater e nos tempos de quimioterapia ia trabalhar cheia de alegria, se dizendo feliz por ter condições psicológicas de lutar contra a enfermidade enquanto muitos, só com a notícia, mergulham na mais absoluta depressão. Jurou que o câncer não a venceria e cumpriu. É o tipo que ri de tudo e por ter enfrentado tudo que enfrentou, leva a vida na “maciota”, sempre dizendo que pra tudo há solução. Acredita que não existe problema “irresolvível” e diz que até mesmo a morte pode ser adiada por longo tempo (ela que o diga).
Dia desses chegou à faculdade às gargalhadas. Estacionou seu possante cor prata e desceu com cara de menina sapeca, com aquela expressão infantil de quem aprontou algo. Contou que vinha na Santos Dumont, dirigindo meio distraída, com a atenção levemente afastada da realidade, quando sentiu seu carro “dar um selinho” na traseira de um importadão preto, quatro portas, vidro fumê, carro de gente com bastante grana. Tomou um susto, mas percebeu que não fora nada, apenas uma encostadinha de leve. A porta do importado abriu e desceu um homem elegante, de paletó e gravata, com cara de poucos amigos. A professora desceu disposta a mostrar que não havia acontecido nada, que foi apenas uma encostada, nada demais. Os dois olharam a traseira do carro e ela viu que estava tudo bem. Porém, o sujeito tava estressado, afobado, indignado por alguém ter encostado no seu belo carro, sem falar que eles estavam no meio da avenida, parados, atrapalhando o trânsito que já se impacientava.
- Ô minha senhora, olha só o que a senhora fez! – disse o ricaço, meio afetado.
- Ô moço, foi só uma encostadinha de nada! Tá tudo bem! – respondeu a professora na maior calma.
- Tudo bem??? A senhora bateu na traseira de um carro do ano, importado, caríssimo. Vamos chamar a perícia!
- Que é isso, rapaz, deixa de besteira, não aconteceu nada com seu carro. Se fosse o contrário eu nem ia perder meu tempo discutindo!
- Besteira? A senhora tá me chamando de besta? – o homem ficou nervoso de verdade – A senhora sabe com quem está falando? Saiba que eu sou promotor!
Tranquilamente, dona Socorro respondeu:
- Se for por isso, também sou promotora. O senhor é promotor de quê?
- De justiça, claro! E a senhora?
E a dona Socorro, na maior cara de pau: - Da Avon!
O estressado simplesmente foi mais um que não resistiu. Caiu na gargalhada. E a dona Socorro também, claro. Os dois ficaram por um bom tempo rindo, deixando os transeuntes sem entender o que estava acontecendo com aqueles dois malucos se acabando de rir em plena Santos Dumont, alheios às buzinas insistentes e nervosas.


by Rosane de Castro/Janeiro/2011