Friday, December 28, 2012



Penina

Ana e Penina eram duas mulheres que tinham algo, ou melhor, tinham alguém em comum: Elcana, esposo de ambas. O homem foi um dos polígamos mais desconhecedores do universo feminino de que se tem notícia, aliás, todo polígamo é leigo quando o assunto é o mundo das mulheres, mundo complexo e cheio de nuances. O corpo de Elcana, pela lei da época, pertencia às duas mulheres, seu coração era somente de Ana e seu espírito somente de Deus, ou seja, dá para perceber que para Penina não sobrava quase nada, o pouco a que tinha direito era dividido. Penina amava Elcana que amava Ana. Desde os tempos mais remotos o coração humano é “terra que ninguém manda”. Há quem diga que naqueles tempos as mulheres esposas de um mesmo homem se davam muito bem (estamos falando de mais ou menos 1000 a. C.). A história de Ana e Penina diz não ser bem assim. Penina odiava Ana porque Elcana a amava e Ana vivia amargurada porque era estéril, enquanto Penina tinha uma penca de filhos. Ana chorava e Elcana lhe perguntava por que ela chorava tanto, pois segundo o próprio, ele era melhor que dez filhos, daí o motivo de eu dizer que Elcana não entendia patavina de mulher . Penina possuía o que Ana mais queria: filhos; Ana possuía o que Penina mais desejava: o amor de Elcana.  
Triste, depressiva e amargurada, Ana chorava todos os dias. Além de conviver com a realidade de ser estéril numa época em que esterilidade era maldição divina e ter filho era a grande realização das mulheres, Ana tinha de enfrentar o deboche de Penina, fruto da sua despeita e ciúme. Podemos imaginar Penina como aquela menina rica e feia, cheia de inveja e raiva da menina pobre e linda, a qual os garotos da rua cantam em verso e prosa. Ela aponta para suas várias bonecas - sonho de consumo da menina pobre -, e canta: “Eu tenho e você não teem, eu tenho e você não teem....lárálárálá”. Assim Penina fazia com os filhos. Mostrava-os a Ana e dizia: Eu tenho e você não tem! E Ana se consumia em tristeza e dor.
Mas este texto não é sobre Ana, coloquemos um pouco da nossa atenção em Penina, a anti-heroína. Todos os holofotes evangélicos geralmente estão voltados para Ana, um nome gravado para sempre na calçada das grandes estrelas bíblicas, inspiração para sermões memoráveis e campanhas de avivamento, enquanto Penina vem sendo exposta por pregadores do evangelho durante anos como símbolo da maldade, excomungada e expulsa dos púlpitos, personagem que talvez tenha inspirado a música “Sabor de Mel”, consumida pela mídia evangélica à exaustão. Penina, uma mulher apaixonada a quem foi negado o amor do seu homem. Tem-se a impressão que servia apenas como uma máquina de fabricar filhos, uma máquina potente, mas apenas uma máquina. Naquele tempo cuidar bem de uma mulher era alimentá-la, vesti-la e não abandoná-la e Penina era uma máquina bem cuidada, pois era das boas, gerava filhos, símbolo máximo da benção de Deus. Só que Penina queria mesmo era o amor de Elcana e como não o tinha tornou-se irritada, briguenta e geniosa. Todo mundo tá careca de saber que mulher mal-amada torna-se nervosa, irritadiça e infeliz, aliás, qualquer ser humano. Imagine uma mulher não-amada. A mulher mal-amada ainda tem esperança, é mal-amada, mas talvez com um pouco de paciência as coisas possam mudar; Penina não era mal-amada, Penina era NÃO AMADA, o que é pior. Para ela não havia esperança nenhuma e onde não há esperança há amargura, para o ódio chegar é apenas uma questão de tempo. Penina tornou-se cruel, cheia de rancor e ressentimento, um fruto azedo de sua época. Penina é a prova cabal de que o universo feminino não mudou tanto assim. Mil anos antes de Cristo as mulheres já ansiavam por amor. Penina talvez fosse uma mulher romântica que se tornou amargurada, cheia de ódio do amor, exatamente por não tê-lo. Se vivesse nos dias de hoje seria fã de Herivelto Martins e no tanque, lavando a roupa de seus muitos filhos, cantaria o clássico “Bom Dia”, cuja letra diz ser o amor “o ridículo da vida”.
A ausência do amor tão desejado fez Penina criar casca grossa. Tornou-se aquele tipo de personalidade forte que não leva desaforo pra casa nem mede as consequências dos seus atos. Era infeliz e decidiu que Ana também o seria. A única coisa que a deixava feliz, que lhe dava prazer era ver o desespero de Ana por ser estéril. A felicidade de Penina ao ver Ana não engravidar é comparável aquele torcedor que vibra mais com a derrota do time adversário do que com a vitória do próprio time. Não lhe bastava o fato de possuir a benção de ter filhos, de ter sido agraciada com um útero fértil, a infelicidade de Ana era o seu prazer. Saber que as noites com Elcana que lhe eram roubadas se convertiam em lágrimas e frustrações para Ana. A fratura do ódio exposta para quem quisesse ver, o fruto amargo desse sentimento autodestrutivo sendo consumido dia-a-dia. Pobre Penina! Consumida pela paixão, enferma de amor. Elcana era o centro da sua vida. Sua paixão pelo marido não permitiu que ela percebesse a existência de um Deus que pode tudo. Paixão é um troço perigoso, até mesmo a grandeza de Deus fica submersa na escuridão, por isso concordo que ela cega. Cegou Penina. Deus não existia para ela, só o Elcana, o gostosão de Ramá.
A história de Penina me comove. Nem posso dizer que é uma história, pois não se sabe quase nada dela, sua presença na trama se esvai já no início do primeiro capítulo do primeiro livro de Samuel. Seu nome é pronunciado apenas três vezes, uma delas para narrar a humilhação de receber apenas uma porção pequeníssima na refeição sacrificial que o trio fazia anualmente quando ía à cidade de Siló, adorar O Senhor, pois a maior parte, é claro, Elcana colocava no prato de Ana e a maior porção dava-se a pessoa mais importante da mesa. Nas outras duas vezes em que ela é citada, é chamada de “competidora” e “a outra” – pelo menos na versão que tenho agora em minhas mãos. Daí em diante o nome Penina é varrido da face da Bíblia, desaparece por completo, só reaparecendo nas guilhotinas dos púlpitos evangélicos e isso por apenas alguns minutos porque depois só dá Ana, Ana e Ana.
Gosto muito de fazer especulações bíblicas. Acredito que nas especulações as verdades podem vir á tona e libertar. Acho que grandes desfechos não foram contados, estão ocultos, escondidos, esperando serem libertados por nossa imaginação. Gosto de imaginar Penina reencontrando Deus, de especular que a gravidez de Ana a fez descer o mais profundo possível no poço da amargura, do ódio, do ciúme, da despeita e ela não se aguentou mais. Foi-lhe tirado tudo, o amor de Elcana, a esterilidade de Ana, o prazer mórbido do deboche. O círculo do fracasso se fechou. Ana estava grávida. E agora? O que fazer da vida? O que fazer na vida? Para ela estava mais que provado que ter filho não era a grande realização de uma mulher e que o amor humano era a coisa mais incerta do mundo. Foi aí, penso eu, que Penina se desarmou e desabou por completo. E foi também aí que Ele, o Deus que ama incondicionalmente e que tem obsessão por salvar, estendeu a Sua mão. O Deus dos cansados e oprimidos deve ter ido, sim, ao encontro de Penina e lhe oferecido aquilo que realmente é melhor do que o amor de dez Elcanas. Penina, a filha pródiga que investiu o seu coração no sentimento humano, que gastou todo o seu estoque de amor e chafurdava na lama do ódio, da amargura, do ressentimento, estava de volta e Deus foi ao seu encontro. Imagino Penina à mesa de Deus, junto com Ana, sendo agraciada com a porção igual de amor incondicional que é dada a qualquer um, com a porção igual do Amor que está acima de todos os amores. 

Rosane de Castro/Dezembro/2012

Ilustração: "A Mulher que Chora", by Pablo Picasso