Monday, November 27, 2006

Minha Pretenciosa Gota de Sofia - Você Matou a Minha Mãe!


Todos os dias o Miguel Doido passava defronte de nossa casa aos gritos. Gritava alto e agressivamente. Como tinha uma boa dicção devido à gravidade e potência de sua voz, o grito que o Miguel dava metia medo nas mais artimosas das crianças. As mães, para conseguirem acalmar a rebeldia de seus pequenos, não diziam mais o velho chavão: - Vou chamar o seu pai! - e sim - Vou chamar o Miguel!.
O Miguel enchia os pulmões, dava aquele tom teatral, trágico e gritava numa voz cheia de sofrimento: - VOCÊ MATOU A MINHA MÃE! – O bairro inteiro ouvia de longe a acusação desesperadora. O pessoal havia se acostumado com os gritos do Miguel e nem se preocupavam mais com o pedaço de pau que ele sempre levava na mão. O Miguel olhava para o “escolhido da hora” com os olhos esbugalhados, a voz grave, a cara vermelha, o pedaço de pau na mão e gritava cheio de acusação, apontando para a assustada pessoa – VOCÊ MATOU A MINHA MÃE!
No começo, quando o Miguel endoidou, o pessoal tomava o pedaço de pau temendo que ele fizesse alguma loucura, mas com o tempo foram entendendo que o Miguel só tinha grito, que era um doido calmo. Muitas vezes fora internado no hospital de loucos, mas sempre voltava e aí o bairro todo adotou os gritos do Miguel e até as crianças se acostumaram aos gritos do Miguel, iam atrás dele fazendo chacota, gritando num uníssono cantante: - VOCÊ MATOU A MINHA MÃE! – e saíam correndo às gargalhadas.
Ninguém sabe o que aconteceu realmente com a mãe do Miguel. Sabe-se apenas que aquele homem moreno, de estatura mediana e com voz grave, apareceu pelo bairro e ali ficou dormindo nas calçadas, ganhando um prato de comida aqui e ali, fazendo pequenos serviços e sumindo de vez em quando.
De repente o Miguel cismava e ia embora por uns tempos. Ninguém sabia para onde; ele simplesmente sumia para voltar depois, dando o seu brado: - VOCÊ MATOU A MINHA MÃE! – Era assim que ele adentrava no bairro e ouvia-se logo a gritaria da meninada na rua.
Um dia, meu tio, irmão de minha mãe, que passara muitos anos morando em São Paulo, após inesperada viuvez, resolveu passar uns tempos conosco. Nessa época o Miguel havia tomado um chá de sumiço e o bairro estava bem calmo.
Meu tio viera de São Paulo com uma vontade enorme de fazer algo que para os que moram no Nordeste é simples e corriqueiro, mas para ele, morador de São Paulo, se tornara um verdadeiro relicário que ele não conseguiu fazer nos quarentas anos em que morou na grande metrópole: colocar a cadeira na calçada à noite e ficar vendo o tempo passar. Segundo ele, isso sempre foi impossível em São Paulo e era uma das mais gostosas lembranças que ele tinha de Fortaleza. Claro que ele resolveu recuperar o tempo perdido e, todas as noites colocava a cadeira de balanço na calçada pra tirar um cochilo.
Um dia, resolveu sair para fazer umas compras e pediu o carro do meu irmão. Na volta aconteceu algo que o chateou: ele atropelou uma cadela e a matou. Muito aperreado, desceu do carro para socorrer o pobre animal, mas já era tarde, a cadelinha jazia inerte no frio asfalto. Ele chegou muito aborrecido em casa e, para afugentar a chateação, naquela mesma noite, mais do que em qualquer outra, meu tio pegou a cadeira de balanço e foi para a calçada. Fazia um ventinho gostoso, aquela brisa boa, noite de lua cheia, meu tio caiu no sono. Dormia tranqüilo quando acordou sobressaltado com um grito horroroso. Olhou assustado, o coração aos pulos. Bem diante de si estava o Miguel Doido, que acabara de voltar ao bairro, com um pedaço de pau na mão, olhos esbugalhados, gritando ensandecido, como sempre: - VOCÊ MATOU A MINHA MÃE!

2 comments:

Antino said...

Você já tinha me contado essa história, mas escrita ficou muito gostosa!!

Antino

Anonymous said...

Rosane...essa foi muito boa! De fato, tinha que ser publicado. Muito interessante!