Foi-se o tempo em que chuva era sinônimo de alegria. Lembro que eu ficava no portão da minha casa, olhando pro céu cinza, pesado, esperando ansiosamente que ele decidisse abrir as compotas e derramar a chuva tão esperada. Quando os primeiros pingos d’água caíam, ouvia-se a voz de alguém em algum lugar, gritando: “Lá vem chuvaaaaaa!”. Tava tocada a trombeta. Era uma coisa medonha. Dava pra sentir o frenesi do bairro em movimento. Abria o portão quase em desespero e saía correndo pra biqueira que tinha na parede da frente da minha casa. Tinha que ser rápida porque um bando de meninos e meninas ensandecidos, enlouquecidos, afoitos, corria pra debaixo dela, disputando cada pedaço. Ela era bem alta e enorme. Como naquele tempo ainda não tínhamos chuveiro em casa, banhar-se com as mãos livres, sem a cuia, era novidade. Não adiantava argumentar que eu e somente eu tinha direito a ela, pois estava na parede da minha casa. As biqueiras eram os brinquedos mais desejados em dias de chuva e como no Ceará não tem inverno, e sim, chuva de verão, a gente sabia que o aguaceiro terminaria logo, por isso, a disputa pela biqueira se tornava tão acirrada. Tinha também o corre-corre das mulheres em direção ao quintal. Corriam com baldes, bacias, panelas, para aparar água da chuva. Essa água era armazenada, guardada com carinho, pois tinha a importante função de lavar cabelos. Diziam que era água pura, limpa, pois vinha de Nosso Senhor. Eu não entendia porque elas não faziam comida ou remédio, afinal, era água diretamente da fonte divina, devia ser milagrosa. Ainda tenho nas minhas lembranças olfativas o cheiro do Neutrox, o condicionador mais famoso da época. Enquanto as mulheres corriam pros quintais, os homens corriam pros balcões das bodegas, onde bebiam cachaça com tira-gosto de avoante, numa irmandade poucas vezes vista. Também não entendia porque tiravam o gosto da cachaça se gostavam tanto dela. Chuva era festa. Trazia alegria, diversão, feijão verde, milho, fruta, fartura. E quando terminava o ciclo das chuvas, vinham as festas juninas e as chuvas do caju. Meu pai, nascido no Cariri, ficava tão contente que contratava cantadores de viola para se apresentar na sala da minha casa, transformando-a num auditório. Quase todo o bairro vinha ouvir a dupla de repentistas que se confrontava com muita criatividade. Colocavam uma bacia de alumínio diante dos dois violeiros. Quem gostasse atirava moedas. Ainda ouço o barulho delas caindo na bacia. Foi-se o tempo. Hoje, chuva dá medo, gripe, dengue, leptospirose, casa desabando, gente desabrigada, revolta, morte. Hoje, chuva mata, quem podia imaginar uma coisa dessas? As biqueiras altas, aquelas que pareciam cascatas, não existem mais, estão rente ao chão, humilhadas. Não são mais brinquedos, nenhuma criança disputa seu espaço, a função delas é simplesmente jogar a água da chuva na calçada, não são mais canais de alegria, são meros objetos de necessidade. As mulheres dessa nova geração nem sabem que um dia suas mães e avós lavaram os cabelos com a santa água que descia do céu e que a noite chuvosa foi testemunha de cabelos cheirosos que seduziam, produzindo suspiros de amor e muito menino.
Rosane de Castro/Janeiro/2011
Rosane de Castro/Janeiro/2011
3 comments:
Seu blog tá show de bola, amo ler seus textos.
Bjo e Benção!!!!
Rô, que texto lindo: lembrei de mim correndo pelas ruas do João XXIII em dia de chuva, jogando carimba na Rua Brigadeiro Torres descalça com uma ruma de meninos. Só Deus sabe como ficava o coração das mães da gente sem saber onde a gente tava no meio da chuva. Obrigada.
Rosane bem lembrado; seu comentário para as pessoas desta época as conduzem a um tempo que não contavam com tanto avanço tecnológico, mas os recursos naturais disponíveis como a chuva que quando caía sobre a terra e seus resultados pós era motivo de prosperidade e alegria, valeu pelo seu comentário, um cheiro forte. Edson Neto
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