Acabei de ler agora mesmo Adélia Prado: “Uma ocasião/meu pai pintou a casa toda de alaranjado brilhante/Por muito tempo moramos numa casa/como ele mesmo dizia/constantemente amanhecendo.”
Não é maravilhosa? Chama-se “Impressionista”. Leio e releio este poema que de tão simples, tornou-se profundo. Lembra muito as “cacimbas” (é cacimba mesmo, poço num gosto, não) do tempo em que eu era menina. Cacimba era coisa simples, comum, quase todo quintal tinha uma; mas havia mistérios nesses buracos de água que ás vezes metia medo. Criança perto de cacimba? Nem pensar! Eu aproveitava os raros momentos em que não estava sendo observada pelos adultos e adorava ficar olhando pra cacimba que tinha no quintal da minha casa e imaginando o mundo que existia lá no fundo. Imaginava que existia uma cidade no fundo do fundo da cacimba e que a água era o céu desta cidade e que quando o balde descia para pegar água, chovia na cidade imaginária. Era uma viagem.
E tomar banho de cacimba? Era maravilhoso. Ainda não tinha a Cagece e a gente bebia a água que o seu Manuel vendia. Seu Manuel era um senhor branco cheio de sardas, ele usava um chapéu de palha enorme, calção bege, botas de borracha preta que iam até o meio da canela (perna). Ele passava duas vezes na semana, numa carroça que carregava um enorme tonel de madeira pintado de verde. Era a carroça da água. O bairro inteiro saía correndo atrás da carroça. Lembro bem da torneira do tonel que eu achava linda e ficava olhando seu Manuel encher as latas de água só para poder apreciar a torneira do tonel. Essa água a gente bebia, cozinhava e lavava o cabelo, a da cacimba era só para fazer a higiene do corpo, da casa e para lavar a roupa. Seu Manuel entrava lá em casa, carregando em cada mão, latas de água que enchiam os potes e o meu coração de alegria. Até hoje não sei por que aquela carroça me alegrava tanto.
Um dia a Cagece chegou, meu pai resolveu aterrar a cacimba e o seu Manuel sumiu com sua carroça de tonel verde. Doeu ver minha cidade imaginária ser soterrada. Chorei tanto, com dó dos moradores, dos bichos. Mas a angústia passou quando vi o chuveiro e a banheira branquinha que meu pai mandou colocar no banheiro. Minha cidade imaginária foi transportada, e o melhor: eu podia fazer parte dela; era só entrar na banheira e construir meu mundo. Passei a sentir calor o tempo todo, a me sentir suja toda hora e tomar banho virou meu passatempo, esporte e hobby preferidos.
Mas voltando para a Adélia Prado, procuro ler seus poemas bem aos pouquinhos, bem devagar, todo dia umzinho. Me emprestaram esse livro e nunca vieram buscar, o que o torna mais desejado; de uma hora para a outra o dono pode aparecer e levá-lo. Quando meus olhos passeiam pelos poemas da Adélia, sinto a mesma alegria quando via a carroça do seu Manuel e o mesmo mistério de olhar para o fundo de uma cacimba nos tempos de infância.
Adélia é gostosa, é “bebível”. É uma cacimba de mistério, uma banheira de prazer, um tonel de palavras; uma poetisa em quem eu estou “constantemente” mergulhando.
Monday, July 16, 2007
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