O ano era 1973. Na Praça do Jardim América havia chegado uma “quermesse”. Eu tinha onze anos e estava deslumbradíssima com a Roda Gigante; para mim não havia aventura maior que dar uma volta naquela coisa gigantesca, que nos elevava ás alturas e provava por A+B que menina era corajosa. Eu não era lá um poço de coragem, muito pelo contrário. Eu era aquela que as meninas tinham que ajudar a subir em árvores e em muros. Juntávamos uma turma pra ir roubar manga em um terreno próximo da nossa casa e elas nunca me deixavam subir porque a subida tomaria muito tempo, se por acaso o dono do terreno aparecesse eu não conseguiria descer rápido, então eu segurava o saco e ficava recebendo as mangas que eram jogadas pelas muito corajosas Jô, Jaqueline e Celsa. Que rapidez para subir na árvore e roubar manga, meu Deus. Eu as invejava profundamente. A mais rápida e corajosa era Jô, pois era pequena e magra, o que facilitava muito.
Conheci Jô aos dez anos, em novembro de 1972 e digo com convicção que ela foi um dos grandes presentes de Deus para mim. Foi uma companheira maravilhosa e esteve comigo nos momentos mais difíceis da minha vida. Pena que Deus a tenha chamado tão cedo. Como eu disse, Jô esteve ao meu lado em tempos difíceis e era “expert” em encorajar, consolar e apoiar um amigo sob qualquer circunstância. Sob QUALQUER circunstância MESMO.
Foi nesse parque, na Roda Gigante, que deparei pela primeira vez com a coragem e com o apoio dessa grande e inesquecível amiga, apoio esse que se repetiria por trinta e dois anos e coragem essa que não ficava apenas nas subidas ás árvores.
Chegamos ao parque e ela foi logo chamando pra gente dar uma volta na Roda Gigante. Minhas pernas tremeram só em pensar de estar lá no alto. Perguntei se ela não preferia o carrossel e recebi um olhar que dizia ser eu uma idiota, então sugeri os barquinhos de madeira e ela me chamou de babaca com os olhos. Tinha doze anos.
- Deixa de frescura, Rosane... Tu num tem vergonha, não? Ter medo duma besteira dessas? Anda logo!!!! – E foi me puxando praticamente a força para a fila que se formava na bilheteria.
Ingresso na mão, roda gigante parando e o coração também. Eu tava tão nervosa que mal podia respirar. Quando chegou a nossa vez de subir, quis desistir, mas ela me segurou pelo braço e me sentou no banco da Roda Gigante. O rapaz que punha a roda para girar fechou nosso banco e subimos um pouco para que outro banco fosse ocupado. A roda começou a subir, subir, subir e o meu coração a descer para os pés. E ela ria da minha cara vermelha, do meu olhar de desespero. Eu olhava para baixo, as pessoas iam diminuindo e meu medo aumentando e a risada da sádica cada vez mais forte. Ainda não satisfeita com meu sofrimento, começou a balançar o banco, a ficar em pé e a gargalhar quando a Roda Gigante descia de uma vez.
Eu já tava pra pedir socorro quando notei que ela ficou séria de repente.
- Que foi, Jô? - O pavor tomou conta de mim. Achei que estava acontecendo alguma coisa com a Roda Gigante.
- O que foi??? – Insisti – Fala logo!!!
O movimento da roda começou a diminuir. Ela me olhou nos olhos e me pediu para olhar para baixo, para uma pequena aglomeração de pessoas que se formava de frente para a bilheteria. Olhei e percebi o tumulto de uma multidão que aumentava. A Roda Gigante deu uma parada para descer a primeira dupla e eu, lá de cima, pude ver que bem no meio da multidão estava meu irmão e junto dele estava Raquel, um dos primeiros travestis de Fortaleza. Os dois eram muito amigos, meu irmão havia a algum tempo assumido sua sexualidade homo e nessa noite levou a Raquel para passear no parque, achando que as pessoas não sabiam que era um homem, mas alguém que conhecia a Raquel deu com a língua nos dentes e o boato que havia um travesti no parque foi se espalhando. Pois bem, olhei um pouco mais e vi que vários homens tinham pedras na mão. Meu coração quase parou de vez. Eles queriam linchar a Raquel e meu irmão não deixava, protegia o amigo que chorava apavorado e como os linchadores conheciam minha família, queriam somente a Raquel e tentavam arrancá-la pela força; como ele insistia em não entregá-la, alguns já estavam ficando irados e já o ameaçavam.
Finalmente chegou nossa vez de descer. Nem sequer colocamos o pé em terra e Jô correu para o lado do tumulto. Eu fui atrás. Como era magra e pequena, foi abrindo passagem “na marra” e se posicionou ao lado do meu irmão.
Dois conhecidos do bairro estavam muito enfurecidos e acusavam meu irmão de trazer para o parque um “degenerado”. Tentavam puxar a Raquel e meu irmão não deixava. Olhei para meu mano e vi pavor em seus olhos. Nessas alturas do campeonato, todo o parque parou para ver o desfecho. Gritos, uivos, xingamentos vinham de todos os lados. Lembro que tocava a música “Meu amigo Charles Brown”, do Benito Di Paula e até hoje tenho horror de ouvi-la.
De repente meu irmão saiu puxando Raquel. A multidão saiu atrás xingando, e Jô e eu fomos juntas. Nós quatro caminhávamos rapidamente e a multidão continuava nos acompanhando. Queríamos chegar na Av. João Pessoa e tomar um táxi, mas tava difícil, os rapazes queriam Raquel de qualquer jeito. Começamos a correr. Eu ouvia gritos de “Pega! Pega!” e senti um gosto de morte, uma sensação de que ali era o fim. Olhei e vi um fusca-táxi. Dei a mão e ele, milagrosamente, parou. Os táxis que passavam não paravam com medo do que viam. A porta abriu. Meu irmão rapidamente subiu e Raquel foi atrás. Um dos rapazes segurou Raquel pelos cabelos longos e loiros. Meu irmão a puxava para dentro do fusca e o motorista, aflito, não sabia o que fazer. Eu olhava sem poder fazer nada. A dor, a raiva e o medo eram tão intensos que me paralisaram quando vi a violência. Comecei a chorar, gritando.
Repentinamente ouvi um urro. Olhei para ver o que havia acontecido e não acreditei na cena. Minha amiga Jô achou um pedaço de pau, não sei onde e deu uma paulada nos testículos do sujeito que agredia a Raquel. Como era pequena e magra, não foi muito difícil acertar o alvo.
O cara caiu no chão urrando de dor. Raquel subiu e o fusca saiu chispando. Ficamos eu e ela.
Uma mistura de alívio e gosto de vingança me invadiu. O amigo do rapaz agressor olhou pra Jô e disse:
- Vou contar pra tua mãe o que tu fez, Celinha. Se tu fosse minha irmã te metia a chibata. Deste tamanho e defendendo baitola. Vou falar pro teu irmão, o Joarilson.
- Pode falar até pro Papa. Se vier vai levar paulada nos ovos também.
Ficou parada com o pedaço de pau na mão e a multidão voltou ao parque. O espetáculo havia acabado. Olhou pra mim e falou:
- Deixa de frescura, mulher. Fica aí parada chorando feito besta.
Saímos caminhando de volta para casa. Íamos em silêncio e de repente ela começou a rir. Ria tanto que me contagiou e eu também caí na gargalhada.
- Tu precisava ver a tua cara vermelha, Rô! Muito engraçada, eu num agüento.
E sempre foi assim. Sempre que a sádica me via em situação de medo, caía na gargalhada. Foi desse jeito até quando estava no hospital para operar-se de um tumor no intestino. Quando as enfermeiras chegaram para levá-la á sala de cirurgia, eu estava junto e meu coração se encheu de medo. Ela olhou pra mim e começou a rir, mostrando as enfermeiras minha cara vermelha. Me fitou o olho e disse:
- Pensa que vai se livrar de mim, hein? Eu vou voltar, cara de tomate! - E se foi.
Naquela noite da tentativa de linchamento quase não dormi. Adrenalina pura. Mas uma coisa eu tinha certeza, apesar dos meus poucos anos: Havia ganho um tesouro de valor inquestionável: minha pequena grande amiga sádica Joaricele, a Jô.
Thursday, June 07, 2007
Subscribe to:
Post Comments (Atom)
4 comments:
Rosane, q delícia de história! Vc escreve de uma forma maravilhosamente clara sem, contudo, esquecer de passar emoção a cada linha. No decorrer da leitura sorri, me indignei e senti todas as suas emoções na Roda Gigante e na "carreira" pra pegar o táxi. Me identifiquei dicersas vezes com vc... tb fui um menino q nunca foi "um poço de coragem". Mais: pude entender um pouco mais a importância da Jô em sua vida... q menina "arretada"! Queria ter tido uma amiga como a Jô...
Valeu Jô, digo... Rô(rssss)!
Vou te dizer uma coisa. Você foi cruel comigo, me pediu pra ler esse texto que: Me fez ficar mais indignado com o preconceito; Me fez chorar de saudade da Jô.
Mas você provou que tem um coração enorme que transborda talento na escrita e que se você continuar com preguiça de escrever um livro, eu vou te processar por negligenciar um dom de Deus.
Que saudade da Jô!!!
Salve Sofia!Feliz pelo retorno dos seus textos.Gosto muito quando você conta esses "causos" do Jardim América.Acho que fica tão interessante de ler quanto seria de ouvir você contá-los.Sim,porque é muito divertido vê-la contado "causos" à maneira Rosane.
E sobre a Jô.Ri enquanto lia esse texto,imaginando a cena e as caras da Jô.Os comentários,o sarcasmo,o humor ácido.Ela já era assim desde menina?Sinto por tê-la conhecido pouco.Mas este pouco foi suficiente para senti-la como uma pessoa interessante e merecedora do nosso carinho.Ainda acho graça dos apelidos que nos colocou:Barbie e Susy.
Post a Comment