Wednesday, June 13, 2007

Gotas de Sofia - O Parto


Elas moravam na "rua dos trilhos", hoje Tristão Gonçalves, bem no centro de Fortaleza. Segundo minha mãe, o bonde passava bem em frente à casa que fora herança do pai das três irmãs solteironas, e mulher solteira naquela época ou seria freira ou ficava no "caritó".
Pois bem, Estela, Isa e Cora eram três moças solteiras que moravam na mesma casa e as histórias de suas solteirices eram das cômicas às dramáticas. Uns diziam que a primeira fora abandonada no altar e assim perdeu o gosto pelo amor; a segunda não tendo o consentimento do pai para casar-se com o homem amado, decidiu não querer conhecer as delícias e as dores do matrimônio com outro; e a terceira, por livre-arbítrio (que Deus a todos dá), resolveu ficar solteira, e assim, sem o saber, foi uma das pioneiras na emancipação feminina cearense.
Cora era uma moça solteira por livre e espontânea vontade, em plena Fortaleza provinciana, arcaica e de população faladeira. Ainda no tempo em que a Praça da Lagoinha era uma pequena lagoa (daí a origem do nome) onde vacas e cavalos iam matar a sede, e que abacaxi era chamado de "ananás".
Cora, a mais nova e a única extrovertida e alegre do trio, com esse "gesto de liberdade", mostrava que tinha o sangue do pai, Theodorico de Castro, abolicionista convicto, que comprava escravos (os poucos que existiam no Ceará) e os alforriava, para espanto dos amigos e preocupação da família, pois o antiescravocrata, um dos fundadores da Sociedade "Liberdade e Porvir", não era homem de muitos recursos. Ficavam espantados com o ato, no que ele respondia:
- Que é que tem? O dinheiro não é meu? - E assim, em nome da liberdade dos negros, a família foi ficando mais pobre.
Um dia, as três ficaram sem o pai abolicionista, sem a mãe, casaram-se os irmãos e a solteirice tornou-se o elo que unia Estela, Isa e Cora. Continuaram morando na rua dos trilhos iluminada por lampião à gás, vendo o tempo embranquiçar-lhes os cabelos e assistindo a chegada do progresso que, para quem começa a viver é essencial e motivo de orgulho, mas para quem está a meio caminho da vida, é o comboio onde se vê partir a própria história e os velhos e cômodos costumes.
As irmãs, rodeadas pelas mudanças que foram pouco a pouco tomando conta de Fortaleza, mantinham-se resistentes na velha casa de quintal diminuído, devido a venda da metade do terreno para que o pai custeasse seu sonho de liberdade. Então, a primeira coisa que viram ir embora foram os pés de sapoti, manga-rosa, genipapo, manguita, siriguela, goiaba, abacate, cajarana, romã, cajá e tantas outras frutas que diariamente viravam saborosos sucos. Logo depois foi a vez da bodega do Chico Ramos, que ficava na esquina da Pedro Pereira, onde crianças saboreavam alfinins e rapazes conquistavam as moças de família comprando tijolinhos em forma de coração, por 400 réis e os enviavam às beldades, junto com românticos bilhetinhos. A velha bodega fechava suas portas para dar lugar e uma das primeiras lojas de tecido.
Já não mais se ouvia o grito da negra velha, filha de escravo, rainha do congo, que já caduca, acusando o filho de lhe ter roubado e vendido a folclórica coroa para beber cachaça, gritava ensandecida:
---- Chicoooooooo, me dá minha coroa, Chico!!!
Ou a voz estridente do vendedor de mel que gritava a plenos pulmões:
---- Meeeeeeeellll, olha o meeeeeel!
A Praça da Lagoinha também foi sendo lapidada pelo progresso, não para ser transformada numa jóia da arquitetura urbana, mas para tornar-se uma escultura grotesca e de extremo mau gosto.
Estela, a saudosista, sentava-se na sala da casa, na mesma cadeira que o pai costumava sentar para falar dos malefícios da escravidão e ficava a lembrar-se e a quase ouvir a banda de música da polícia que tocava no coreto da praça todos os domingos. Chamavam esse acontecimento de "retreta".
---- Vai ter retreta hoje na praça - avisavam os transeuntes, felizes da vida.
As três irmãs ouviam a retreta sentadas num banco de madeira bem no centro da praça, que era divida. O centro da praça era exclusivo às famílias, e lá, as domésticas não podiam transitar. Eram-lhes permitidas somente as pontas da praça, onde não havia bancos.
A música vinha inocente, misturada ao perfume das boas-noite brancas e das patiulís, que impregnavam o ar das noites cálidas de Fortaleza.
Assim, Estela, Isa e Cora foram envelhecendo, envelhecendo e não se sabe se feliz ou infelizmente, foram ficando para ver a rua dos trilhos tornar-se Avenida Tristão Gonçalves, os automóveis tomando o lugar do bonde, o asfalto chegando, a praça tornar-se a "praça dos malandros" e as lojas aglomerando-se qual uma favela comercial.
Estela era vegetariana convicta, defensora exagerada do sexto mandamento "Não matarás". Não admitia assassinato nem de barata, para desespero de Cora e Isa, que viviam às turras com a irmã, porque esta se recusava a matar o repugnante inseto. Quando via Isa com um chinelo na mão, pronta para começar o holocausto, corria e segurava os braços da carrasca de baratas.
---- Você não quer viver, Isa? Não gosta de viver? Então deixe nossas irmãs inferiores viverem também -- bradava defendendo o estranho parentesco.
---- Irmãs inferiores? Só se forem suas, porque minhas não são, não! -- respondia Isa indignada, com chinelo em punho, disposta mais do que nunca à carnificina.
Um dia, Estela caiu doente de velhice. Estava com quase cem anos, farta de dias. Todos nós sabemos que a inevitável morte, mais cedo ou mais tarde chegará, o que não foi diferente com nossa querida vegetariana, defensora da vida. Uma doencinha aqui, outro probleminha ali, não teve alimentação saudável, à base de frutas e verduras, que pudesse fazer alguma coisa por "Nenê" (assim chamada carinhosamente), apesar da dieta especial de tantos anos ter ajudado na preservação da espécie.
Isa e Cora cuidavam de Estela com carinho. Cora era figura extremamente divertida, possuía o dom de animá-la e estava sempre ao seu lado, enquanto Isa dedicava-se à administração da casa, pois naqueles dias, devido à idade avançada das três, era-lhes necessário ter uma diarista, vista no início com muita desconfiança, mas com o tempo aceita com carinho pelos três bons corações que habitavam a velha casa da Tristão Gonçalves.
Uma tarde, Estela sentiu uma forte dor de barriga. Fortes cólicas agitavam seu corpo magro e enfraquecido pelos anos. Já não podia levantar-se e andar até o banheiro e recusava-se a usar a "aparadeira". Dizia que enquanto tivesse lucidez, jamais usaria humilhante indumentária, e justamente por causa disto foi providenciado uma cadeira de rodas com uma abertura no assento para que assim nossa querida vegetariana pudesse sentar-se e fazer suas necessidades sem precisar caminhar até o banheiro.
As cólicas apertavam mais e mais. Neste dia, Isa e Cora estavam na cozinha conversando e ouvindo rádio. Prestavam atenção na voz desafinada do moço que cantava "Chega de Saudade" e comentavam sobre as mudanças na música popular brasileira. Reclamavam porque no rádio não se ouvia mais Augusto Calheiros e Orlando Silva, que segundo elas, foram substituídos pela tal Bossa-Nova. O volume da música não lhes permitiam ouvir os apelos desesperados de Estela, que esforçava-se para não fazer as necessidades na cama, pois outra característica sua era a higiene extremada.
A diarista, que acabara de chegar da feira, entrou esbaforida na cozinha, chamando aflita:
---- Dona Cora, a dona Estela tá feito uma desesperada gritando por vocês. Acho que ela tá sentindo alguma coisa.
Todas acudiram ao quarto, onde encontraram Estela se contorcendo de dor.
----- Cora... Cora -- chamava Estela aflita -- Eu quero ir ao banheiro... Quero ir ao banheiro -- gemia com voz sumida, pálida de dor.
A diarista correu a buscar a cadeira de rodas. As três, com muito esforço, colocaram-na sentada e já empurravam a cadeira em direção ao banheiro que ficava perto da cozinha, quando Cora percebeu que não daria tempo. Olhou para a jovem diarista e pediu numa aperreação só:
----- Corra e traga o penico depressa!!!!
A diarista saiu tumultuada e trouxe o penico que foi imediatamente colocado em baixo da cadeira de rodas, em lugar estratégico.
Estela contorcia-se de dor cada vez mais. Grandes gotas de suor escorriam de sua testa pálida, afinal, completavam quase cinco dias que não fazia aquele tipo de necessidade fisiológica, devido a prisão de ventre.
Isa segurou num braço e a diarista no outro, enquanto Cora a observava de frente, esperando ansiosa que a irmã mais velha vencesse a difícil batalha. A pobre mulher espremia-se fazendo uma força descomunal, além da capacidade de seu pequenino e frágil corpo. O rosto branco tornou-se vermelho, devido ao esforço, deixando Cora apreensiva.
Com os olhos esbugalhados, Estela espremia-se, parecendo que seu corpo estava prestes a explodir.
De repente sua fisionomia mudou drasticamente. O que antes era a face do terror tornou-se paz, enquanto no pequeno quarto pairava um fedor inacreditável.
Isa, Cora e a diarista levaram, simultaneamente, as mãos ao nariz. O mau cheiro impestava o ar. A diarista inventou uma desculpa e saiu. Estela, tranqüila, mas ofegante, chamou pela irmã:
------ Cora... Cora...!!!
------ O que é Estela? -- perguntou curiosa.
Ainda ofegante e sem forças, Estela estendeu as frágeis e trêmulas mãos para Cora e a segurou pelo braço com as poucas forças que lhe restavam, implorando chorosamente:
------ Por favor, Cora... Cuide do meu filho... Cuide do meu filho... --- delirava.
As duas irmãs entreolharam-se espantadas. Cora olhou para dentro do recipiente que estava embaixo da cadeira de rodas, sem acreditar como algo tão grande saíra de um corpo tão magro.
Apontou para o penico e com dedo em riste, exclamou alto e bom som:
----- Desse fedorento aí??? NUNCA!!!!!

1 comment:

Marlene Cruz said...

Rô,
vc escreve bem demais...
parabéns!!!
esse final é incrível.
beijos,e saudosos abraços.