Sunday, May 06, 2007

Gotas de Sofia... - Lembranças

Acho que já comentei por aqui sobre a mãe da minha amiga Iracélia, a D. Matilde.
Esses dias de chuva têem me trazido á memória a figura inesquecível da D. Matilde, a lavadeira do bairro. Separada do marido e tendo uma filha pra criar, D. Matilde lavava e passava pro pessoal do bairro, inclusive pra minha mãe. Todas as noites, ela e a Iracélia iam para minha casa. D. Matilde via TV junto com mamãe enquanto eu e a Iracélia, mais um bando de meninas, brincávamos de “carimba” na rua. Dias de muita felicidade.
A D. Matilde era detentora de uma personalidade mística e dizia ter o poder de receber “revelações” sobrenaturais. Numa dessas, que sempre acontecia depois dela tomar uns bons goles de cachaça, descobriu que se Deus podia ressuscitar pessoas, ela podia ressuscitar animais; e foi a partir dessa “revelação” que a vida da minha boa amiga Iracélia passou por dias turbulentos. Tudo que era de gato morto, seja por envenenamento, atropelamento ou doença, a D. Matilde, se tivesse tomado uns goles da “marvada”, corria a pegar o defunto e tentar ressuscitá-lo.
Tinha dias que ela chegava a levar para dentro de casa três gatos mortos e passava a noite inteira na tentativa de ressuscitar os bichanos com palavras incompreensíveis (pelo menos para mim) e com danças esquisitas.
A Iracélia ficava louca, coitada. Certa vez chegou com uma enoooorme jia. Era grande, gorda e... morta! A pobre Iracélia ficou mais que desesperada. D. Matilde cismou de ressuscitar a bicha e praticamente obrigou a filha a participar do ritual. Minha amiga contou depois que sua mãe abriu a jia com uma gilete e fez inúteis tentativas, é claro, de ressuscitar o animal. Vendo que não conseguia, assou a jia e fez tira-gosto. Foi aí que nasceu uma idéia na fértil cabeça da Iracélia. A minha amiga simplesmente começou a “caçar” jias no bairro e teve muita sorte porque era época de inverno e elas, as jias, faziam filas para serem apanhadas. Como aprendeu a “tratar” jia com a mãe, a Iracélia as vendia nos bares do bairro, que utilizavam carne de jia como “suavizante” da cachaça. Foi um sucesso! Os pinguços do Jardim América adoravam a iguaria e a Iracélia adorava ajudar no orçamento da casa. Foi com carne de jia que a Iracélia pôde ir para uma escola particular, a escola da D. Juanita que, ironicamente, ficava bem defronte do canal do Jardim América, lugar de “trabalho” da minha querida amiga. Era lá que ela capturava seu ganha-pão.
Eu mesma provei das jias da Iracélia. Uma delícia, de carne macia e adocicada, muito parecido com carne de frango. A gente comia com grapette, lembra? Mas só serviam assadas porque cozidas eu morria de nojo.
Estou agora olhando a chuva cair e vejo na memória o rosto da D. Matilde, da Iracélia e a saudade me aperta o peito. A memória tem esse poder de ressuscitar lembranças sem a necessidade de rituais
. Esse é o poder que Deus nos deu de ressuscitar o que já foi.

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